Um dos palos mais populares do flamenco é o alboreá. É um tipo de cante flamenco ligado aos casamentos ciganos e está cheio de simbolismo, respeito e emoção. Muitos ciganos acreditam que o alboreá só deve ser cantado em cerimónias de casamento, porque se for cantado fora desta celebração, pode atrair “mal fario” (má sorte).
Como no nosso tablao de flamenco o alboreá é um dos palos que utilizamos no nosso espetáculo “Flamenco Puro”, achámos importante tentar explicar em que consiste.
Se quiser saber mais sobre o alboreá, contamos-lhe tudo sobre ele, a sua origem, estrutura, simbolismo e muito mais, não perca.
O que é o Alboreá?
O termo alboreá, vem da mistura de “alboradas” ( que são as tradicionais canções da madrugada) e da palavra Caló boreáque significa “para a noiva”.
As suas origens remontam à cidade de Granada, mas a sua influência estendeu-se a outras cidades como Córdova, Jaén, Sevilha e Cádis.
Este palo flamenco era cantado tipicamente na manhã do casamento, quando a noiva partia para a casa do marido.
É um tipo de canto que se realiza num ambiente íntimo e familiar, sendo um canto de despedida e de bênção.
É praticamente considerada, na cultura cigana, uma canção sagrada que não deve ser cantada fora do seu contexto.
Em Granada, tornou-se famoso especialmente nas zambras de Sacromonte – com artistas como María la Canastera.
Noutras províncias, foi adaptado a ritmos locais como as bulerías, os tangos ou o soleá por bulería.
Há uma forte crença de que o alboreá não deve ser cantado fora da celebração do casamento cigano.
De facto, os Cantares, gravados por Rafael Romero (artista apelidado de El Gallina) em 1954, foram muito criticados pelo povo cigano e considerados uma transgressão cultural.

Métrica, ritmo e acompanhamento do alboreá.
Sendo um tipo de palo cerimonial e íntimo, tem uma estrutura muito poética e musicalmente é muito particular, o que reforça o seu carácter ritual e solene.
As suas particularidades reflectem-se sobretudo na sua métrica, na forma como é interpretada e no seu ritmo.
Métrica dos versos de alboreá
Este cante é normalmente composto por quatro versos heptassilábicos (ou seja, de sete sílabas métricas cada), e inclui geralmente um refrão que se repete ao longo do cante para fins melódicos e simbólicos.
Esta forma métrica simples e curta facilita a transmissão da mensagem emocional de uma forma mais direta, cheia de poesia e significado.
Exemplo de estrutura:
Que a rapariga vai (7)
pela rua certa (7)
a mãe chora por ela (7)
com a cara tapada (7)
Ritmo e ritmo do “alboreá”.
Em relação ao compasso de um alboreá, podemos dizer que ele é bastante flexível, o que dá certa liberdade ao executante, principalmente nos primeiros compassos.
É comum que comece de forma mais livre, com uma expressão vocal mais recitativa ou melismática, e que depois o padrão de canto se torne mais definido.
Muitas vezes tem um compasso de 12 batidas, semelhante ao do soleá por bulería, e outras vezes é tocado sobre um compassode 6 batidas, o que lhe dá um toque mais suave e medido.
Esta flexibilidade rítmica permite que o cante se adapte ao momento emocional e cerimonial do casamento cigano, reforçando o seu carácter sagrado.
Acompanhamento do alboreá
Um alboreá pode ser interpretado de diferentes formas consoante o acompanhamento:
- Canto a cappella, muito comum quando se pretende acentuar a emoção e a solenidade do evento.
- Acompanhado pela guitarra flamenca, que dá um toque harmónico para embelezar a melodia do cantaor ou da cantaora.
- Acompanhada de palmas, ou do eco dos nós dos dedos numa mesa ou cadeira, aumentando a ligação com as suas raízes, esta é a forma mais tradicional.
Estes acompanhamentos discretos reforçam ainda mais o sentimento e o carácter íntimo do alboreá, que não é um espetáculo, mas praticamente um ritual cerimonial.
Significado simbólico e espiritual

- Símbolo da transformação feminina: O alboreá representa a passagem de rapariga a mulher, de viver em casa do pai a viver com o marido. Representa a despedida da infância e ao mesmo tempo o início da nova vida como esposa, é um ritual de transição.
- Canto de bênção: O alboreá também para além de uma canção cheia de arte, é uma oração que abençoa a noiva. Nele, costuma-se desejar à noiva felicidade, fertilidade e sorte na sua nova vida.
- Presença do sagrado: No âmbito do sagrado, o alboreá é considerado um “rito iniciático”. Pensa-se muitas vezes que o alboreá tem a capacidade de “chamar os antepassados”, daí a crença de que não deve ser cantado como entretenimento ou espetáculo.
Letras tradicionais e temáticas
A letra de um alboreá está normalmente relacionada com o amor, a pureza, a família, a despedida da mãe ou os votos de casamento.
Exemplo de caligrafia tradicional:
A bela noiva está a ir embora,
ela vai-se embora com o seu lenço,
Que a Virgem a abençoe
e ilumine o seu caminho.
Intérpretes históricos e gravações importantes
- María la Canastera: É uma cantora muito ligada ao cante de la alboreá dentro das zambras de Sacromonte. A sua forma de o cantar é considerada um testemunho quase antropológico.
- Rafael Romero “El Gallina”: Este cantor foi bastante polémico, pois foi um dos poucos artistas que se atreveu a gravar albores, pelo que foi muito criticado. De facto, as suas gravações estão entre os poucos albores que se podem encontrar em áudio.
- La Paquera de Jerez, Carmen Amaya e outros: alguns destes artistas cantaram-na ocasionalmente, mas sempre com respeito pela tradição.
La alboreá hoje
- Uso restrito: Atualmente, o alboreá manteve a sua tradição e é um palo flamenco que só se canta nos casamentos ciganos. A sua execução pública é mal vista na cultura cigana.
- Resgate cultural: Embora o seu canto seja muito limitado, foi efectuado um trabalho de investigação e compilação para evitar a sua perda, especialmente em arquivos etnomusicológicos.
- Presença no cinema ou no teatro: Alguns realizadores incluíram o alboreá em filmes ou representações teatrais que tratam de casamentos ciganos, mas este facto também é controverso.

Comparação com outros paus de cerimónia
- Diferença com a saeta ou a canção de embalar: Podemos dizer que se diferencia de outros palos emocionais como a saeta (religiosa) ou a canção de embalar (maternal), o alboreá tem uma função exclusivamente social: acompanhar a entrada no casamento.
- Papel predominantemente feminino: Embora o alboreá possa ser cantado por um homem, é mais comum que seja cantado por uma mulher – mãe, irmã, amiga -, o que aumenta a sua dimensão íntima e matriarcal.
O alboreá é um cante carregado de simbolismo e emoção, com profundas raízes ancestrais e que deve ser respeitado: é um rito cerimonial que raramente é ouvido fora do contexto nupcial.